
Carta de Pero Vaz de Caminha
Carta a el-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil
Senhor, posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta Vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta. (...)
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até terça-feira d’oitavas de Páscoa, que foram 21 dias d’Abril, que topamos alguns sinais de terra (...) E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves, a que chamam fura-buchos. Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente d’um grande monte, mui alto e redondo, e d’outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o capitão pôs o nome o Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz. (...)
E dali houvemos vista d’homens, que andavam pela praia, de 7 ou 8, segundo os navios pequenos disseram, por chegaram primeiro. (...) A feição deles é serem pardos, maneira d'avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. (...)
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tãoçarradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha. (...)
E uma daquelas moças era toda tinta, de fundo a cima, daquela tintura, a qual, certo, era tão bem feita e tão redonda e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. (...)
O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira e uma alcatifaaospés por estrado, e bem vestido, com um colar d'ouro mui grande ao pescoço. (...) Um deles, porém, pôs olho no colar do capitão e começou d'acenar com a mão para a terra e despois para o colar, como que nos dizia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como que havia também prata. (...)
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (...)
Capitão-mor: trata-se de Pedro Álvares Cabral.
Conta: relato.
Oitavas de Páscoa: semana que vai desde o domingo de Páscoa até o domingo seguinte.
Horas de véspera: final da tarde.
Chã: plana.
Cousa: coisa.
Vergonhas: órgãos sexais.
Çarradinhas: alguns historiadores consideram "saradinhas", isto é, sem doenças, e outros consideram "cerradinhas", isto é, densas.
Tinta: tingida.
Alcatifa: tapete, que cobre ou se estende.
Entre-Douro-e-Minho: antiga província de Portugal.